quarta-feira, 5 de setembro de 2007


Apelo

“Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa da esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho. Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, e até o canário ficou mudo. Para não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam e eu ficava só, sem o perdão de sua presença a todas as aflições do dia, como a última luz na varanda.

E comecei a sentir falta das pequenas brigas por causa do tempero da salada – meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa, calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolhas? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.”

Alfredo Bosi, 1975.

É um conto abstrato e polissêmico. A sua beleza e robustez estética nos deixa um tanto com absinto e saudade na alma. O discurso de Alfredo Bosi elide texto e assunto. Explico: o tema da saudade é tão forte como um cutelo. O cutelo vai cortando aos poucos. Retirando as farpas. O cutelo é uma ferramenta específica, não serve pra tudo. Assim é este conto. Não serve pra tudo, mas serve cortar. Cortar a alma. Um corte paradoxal.

O corte na alma é feito uma vez que não sabemos quem é a senhora deste conto. O sujeito passivo aqui sofre. E no seu sofrimento, sofremos nós. A notícia de nossas perdas, sempre, sempre vem aos poucos. Essa é a dura realidade a qual temos que conviver. Nem sempre a ´luz na varanda´ deixará as coisas claras e óbvias. No estalar da saudade, muitas vezes, só reluz negrume e bagunça.

Assim somos. Acaso é saudade, Senhora? Não sabemos. Essa é a nossa dor, uma dor que noticia aos poucos.

Um comentário:

Unknown disse...
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