sexta-feira, 23 de março de 2007



Café

Um conto delicioso


O cheiro do café expresso caminhava lentamente no interior da livraria. Num sonoro e silencioso passar de folhas, entre muitos livros e revistas, logo na entrada, à esquerda guloseimas, cigarros, cachimbos, revistas de foto-novelas e uma serena mulher, baixa, olhos claros de mel, sentada de trás do balcão servindo-se de caixa registradora.
Um homem de bengala, acho que cego, pergunta por um tal “desconhecido” Ricardo Reis, outro pegava um livro que acabava de cair da estante que ficava próxima aos livros de romances e os de poemas. Uns velhinhos buscavam Paulo Coelho ou qualquer outro da linha. Precisavam urgentes.
Naquela hora, junto ao aromático café, um homem, cabisbaixo, silencioso, cabelos pretos, visto de costas, folheava sincronicamente, sob horas, as mesmas obras. Ao lado, um casal – pareciam amigos : cigarreta à mão, está comprando Augusto dos Anjos e observando a Folha de São Paulo; ela lança-lhe várias perguntas sobre família, sobre os semanários, as novas fofocas da cidade. Na verdade, conversaram, por meia hora.
Por um instante, naquele negrume diálogo, seu jornal cai, e dela, o saco de balas. Ainda se recompondo a compostura pergunta:
--- Você gosta de Kafka?
Ela não titubeou e solta:
--- Não, prefiro esfirra!
O homem da leitura, de costas, escuta, respira, levanta a cabeça e começa a devolver à estante O Processo, A Metamorfose e Carta ao Pai que levavam seu nome na capa. Estende e abana a mão à mulher do caixa e caminha lentamente para fora e senta-se no Café ao lado.

Um comentário:

Mariana Amorim disse...

Há muito tempo, eu tenho vontade de gritar uma coisa para o mundo...No começo era só uma indignação, coisa pequena, que dava pra segurar. Mas com o tempo foi se tornando insuportável, grande e difícil. Então decidi criar esse blog.
Foi em um dia nublado, quando falava com um conhecido, no prédio onde trabalho e nossa conversa rumou para céu, aviões, viagens e terminou no inevitável: EXUPERY.
(sim, porque para mim, "todos os caminhos levam aos livros")
E foi nessa hora que eu tive a infelicidade de perguntar:
"_Você já leu 'O pequeno Príncipe' ?"
A resposta doeu em mim como um parto:
"_Não gosto de livros de criança "
Tive vontade de mandá-lo para o asteróide B-612. Respirei, engoli, pensei da paciência do Divino Mestre Jesus e de sua célebre frase: "perdoa Pai. Eles não sabem o que fazem." E me veio à mente uma frase do próprio livro: "Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma." E deu tempo AINDA de lembrar do professor Douglas, fantástico mestre da literatura perguntando: " você gosta de Kafka? " e o outro respondendo: " Não...prefiro esfirra."
Ora, se O Pequeno Príncipe fosse de fato uma literatura infantil, e as crianças do mundo inteiro o lessem desde 1943, não haveriam por aí os adultos que vemos hoje. Porém, se nem todos os adultos tem capacidade para compreender a complexidade da literatura de Exupery, como poderia este ser um livro para crianças?
Oh, parece que ouço um coro ao fundo, com a resposta:
" _É porque tem figuras...o livro é cheio de desenhos..."
Sim...eu respondo...e porque será? Porque sem os desenhos, as cabecinhas de melão adultas, não conseguiriam entender a essência e a profundidade dos valores éticos-morais-sentimentais-supremos da obra.
Mas pra finalizar, gostaria de esclarecer que em nenhum momento teria considerado ignorante meu colega, caso ele tivesse me respondido:
"Não. nunca ouvi falar em tal livro."
Ignorância, para mim, é JULGAR o que não se conhece. É trazer conceitos e idéias formadas sobre algo que não se tem nem noção do que é...
Enfim, deixo aqui o meu grito, preso há tanto tempo e colocado pra fora com toda a força dos meus pulmões:
" O PEQUENO PRÍNCIPE NÃO É LIVRO DE CRIANÇA!!!!!!!!!!!!"